Um
jipe, três escoteiros e um Jamboree: "Operação
Abacaxi"!
Extraído
da extinta revista Fogo de Conselho
União dos Escoteiros do Brasil - Região do Paraná |
Ora
no jipe, ora empurrando o jipe, ora puxando o jipe, em canoa,
em trem, em navio, Charlie, Hugo e Jan percorreram 17 países
através de 72 mil km. |
Em
Niagara-on-the-Lake, no Canadá, realizou-se, em agosto de 1955,
o VIII Jamboree Mundial. Três subchefes do Grupo Escoteiro Carajás,
de São Paulo, - de um total de 18 participantes brasileiros -
planejaram sua ida de um modo sensacional: iriam de jipe!
Marco
Polo não teria tido melhores e mais afoitos companheiros em suas
viagens do Oriente para o Mediterrâneo, do que esses três audazes
escoteiros... Assim, ora no jipe, ora empurrando o jipe, ora puxando
o jipe, em canoa, em trem, em navio, Charlie, Hugo e Jan percorreram
17 países através de 72 mil km, dentro das quatro estações do
ano, enfrentando chuva, sol, neve, frio, calor, ora dormindo à
luz das estrelas e ora em colchões de mola...
J. B.
Versteg, diretor superintendente da Agromotor S/A, foi escoteiro.
Pertence à velha guarda e conheceu Baden-Powell no Jamboree Mundial
de 1929, na Inglaterra. Era o diretor de Hugo Vidal, subgerente
de vendas da organização. Cedeu o jipe. E a Agromotor o preparou:
colocou-lhe um tanque de 60 litros para água, dois depósitos sobressalentes
de 30 litros para gasolina, reforçou a suspensão para agüentar
2000 kg (original é 750 kg), adaptou um depósito para mantimentos,
cobriu-o com um teto de aço, proveu-o de estofamento especial,
meteu-lhe 4 pneus lameiros e 2 sobressalentes e um porta-bagagem.
E pintou-o de "verde-e-amarelo", nome com que foi batizado. E
o "Verde-e-Amarelo", como um cão fiel, rodou por aí afora com
a sua sobrecarga, comendo as estradas com sua tração nas quatro
rodas, com sua módica ração de óleo e gasolina, sempre dentro
do lema de seus tripulantes: Sempre Alerta!
Uma
república grega em miniatura
Não tinha
muita população, mas era grega de antes de Aristóteles. Era até
estóica, pela natureza de seus desígnios, a república que foi
instaurada imediatamente entre os seus três habitantes, limitados
nos quatro pontos cardeais pelas quatro rodas do "Verde-e-Amarelo".
Sua constituição se compunha de um só título, capítulo, parágrafo
e alínea: - todos têm que fazer tudo quanto seja preciso. E sob
tão simples legislação ficou assegurado, de direito, como de fato,
o sucesso do empreendimento. A Secretaria (correspondência e relações
públicas) competia a todos, assim como a aquisição de mantimentos.
A cozinha, a cada um em rodízio. Condução do veículo: duas horas
para cada um, sem prorrogação. Tesouraria: por especial necessidade
de controle das disponibilidades financeiras, Charlie foi designado
como "ministro das finanças". Acampamento, lavagem do jipe, limpeza,
eram de competência coletiva. Motor e funcionamento do "Verde-e-Amarelo"
eram incumbência de Hugo, realmente mecânico e conhecedor profissional
do assunto.
E assim,
a pequena república itinerante se pôs em marcha, partindo de São
Paulo em 2 de abril de 1955, destinada a alcançar Niagara-on-the-Lake
em agosto do mesmo ano.
Com
o pé na estrada rumo ao sul
No primeiro
estirão, a pequena caravana atravessou pelas cidades brasileiras,
no rumo sul, até alcançar Uruguaiana e entrar no Uruguai, passando
por Montevidéo e atingindo, a seguir, Buenos Aires, na Argentina.
Ao entrar na capital portenha, levaram a satisfação de haverem
coberto um percurso debaixo de grandes chuvas, com estradas alagadas,
passando com o jipe a váu com 70 cm de água, em certos trechos,
e que, em várias ocasiões atingia o piso de pontes. Retirada a
sobrecarga de barro que cobria literalmente o jipe, o destino
era a Cordilheira dos Andes, na pitoresca região dos lagos, já
a uma altitude de de 1500 metros, em regiões de beleza emocionante,
no maçico andino, entre picos cobertos de neve e precipícios a
pique, à beira de estradas, muitas vezes, pouco mais largas do
que a bitola do veículo. Ainda aí, perseguia-os a estação de pesadas
chuvas, de modo que só mesmo grande habilidade em manter um regime
constante de baixa velocidade e a inigualável ajuda da tração
reduzida nas 4 rodas do jipe foram os elementos de sucesso para
superarem a passagem. E, naturalmente, o fato de serem escoteiros...
Cerca de 500 km foram percorridos em 3 dias, por estradas ainda
em construção e sem pontes... Distância que, a velocidade média
de cruzeiro, daria pouco mais de 8 horas... Chegaram, por fim,
a Talca e a Santiago do Chile, onde os escoteiros chilenos lhes
proporcionaram entusiástica recepção.
Bolívia,
Peru, Equador e Colômbia
Chegando
a Valparaiso, ainda no Chile, avistaram, pela primeira vez, o
Oceano Pacífico, gozando de panoramas de beleza singular, até
que saindo de Viña del Mar ingressaram na região deserta de Atacama,
viajando a temperaturas de calor extremo, durante o dia, e praticamente
a zero, durante a noite. Descendo
até Antofogasta, os três passageiros tiveram uma dura prova de
resistência, pois as estradas eram arenosas e de terra batida,
do tipo "costela de vaca", que se estenderam por dezenas e dezenas
de quilômetros. Quase sem água, sem provisões e sem gasolina,
reaprovisionaram a caravana nessa cidade famosa por seu vulcão.
Ainda
no Chile, atingiram a altitude de 4000 metros, seu ponto mais
elevado, através de estradas de areia grossa e novamente "costela
de vaca", passando pela cidade de Chuquimacamata, local onde se
situa uma das maiores minas de cobre do mundo, que visitaram.
A fim de evitar rachamento no bloco e radiador devido ao congelamento
da água, tiveram que providenciar um recurso pouco conhecido de
nosso clima - a total drenagem, à noite, com o motor em descanso.
A entrada
na Bolívia se fez por escolha de trilhas, de areião, que se espalham
nas mais variadas direções, pois não há, praticamente, estrada.
Assim, tornou-se necessário "rastrear" aquela que fosse a certa...
No povoado de Colcha-Ca foi-lhes dada a oportunidade de assistir
a uma festa de caráter inca, com cantos e danças religiosas de
mais remota origem. Daí, por indicação de um índio, seguiram na
direção de um pico nevado avistado a uns 90 km de distância. Como
essa é uma região de salinas (o próprio nome da cidade é Salinas),
sucedeu que a água que respingou a fiação do jipe, ao secar, produziu
a sulfatação propícia a curto-circuitos, que lhes deram alguma
dor de cabeça...
De Salinas
a Oruro e La Paz, em péssimas estradas, ainda a "reduzida" do
jipe foi-lhes de inestimável valia, pois não passavam de 30 km/h.
O Altiplano Boliviano oferece altitudes que variam de 3700 a 4300
metros, compensadas as dificuldades do calçamento das estradas
pela magnificência do panorama descortinado. Devido à rarefação
do ar àquela altitude, foi necessário ajustar a entrada de gasolina
no carburador. E, passando pelas margens do lago Titicaca, nascente
do nosso rio Amazonas, a 4000 metros do nível do mar, visitaram
a Igreja de Nossa Senhora de Copacabana, que também é venerada
pelos peruanos da fronteira com a Bolívia.
Novamente
o jipe foi submetido a nova prova, ou antes, provação. A pequena
"república" escoteira deliberou fazer um estirão de 1350 km sem
paradas. Refeita a matalotagem aos preços de Copacabana (a da
Bolívia...), bastante conveniente para o bolso de um escoteiro,
obtidos os "vistos" na polícia da fronteira, que é trancada com
correntes que vão de um lado a outro da estrada, a caravana saiu
de Puno em "vôo direto" para Lima, subindo e descendo, descendo
e subindo de 2000 a 4500 metros, até que pegaram piso de asfalto
a 10 km de Arequipa e daí por mais 100 km igualmente asfaltados,
até o final da etapa demarcada, a capital do Peru, cujos aspectos
lembram intensamente a nossa Paulicéia.
Era 22
de junho quando disseram adeus a Lima para gozarem das estradas
asfaltadas até a ponte internacional que demarca a fronteira,
metade pintada de cores peruanas, a outra metade nas do Equador,
dando-lhe um colorido um pouco grotesco. Depois da ponte, terra
batida por 50 km, de péssima estrada, até Quito.
O jipe,
o "Verde-e-Amarelo", 100%. Charlie, Hugo e Jan, 200%! Novamente
haviam saído do nível do mar, e a 2000 metros de altitude trocaram
a agulha do carburador, à vista soberba de picos nevados de 5000
a 6000 metros, para descerem outra vez até a região puramente
equatoriana, onde o calor e a umidade derrotam as mais enérgicas
disposições, tal a depressão física que provocam.
Quito,
cidade pequena e pitoresca, cercada de montanhas, recorda La Paz.
Depois de acamparem uma noite a 3050 metros de altitude, ainda
em território equatoriano, deliberaram fazer outra "arrancada",
sem etapas, até Bogotá, a capital da Colômbia. Aí planejaram a
seqüência. Dada a notícia de que, dentro de 60 horas, partia um
navio de Cartagena para o Panamá, um novo "rush" foi iniciado
e, em 51 horas, através de 1280 quilômetros, dos quais 700 nas
serras. Alcançaram aquele porto, para saber que o navio se atrasara
dia e meio.
América
Central
Ao norte
da Colômbia e sul do Panamá ficam os milenares pântanos de Darien,
zona de trânsito impossível. E, pela primeira vez, sem estarem
viajando sobre rodas, os nossos três escoteiros chegaram ao Panamá,
de onde, novamente, tiveram que se transportar, e ao "Verde-e-Amarelo",
pois a região rochosa e montanhosa do norte desse país não permite
trânsito.
Atracando
em Cristobal, terminal Atlântico do canal, ali foram informados
da impossibilidade de vencer a região entre as cidades de Pozo
Sur e Dominical, onde, ainda que pela praia, as interrupções são
constantes. Por cortesia e cooperação da Pan American Airways
foram acomodados, a preços especiais, em um DC-4 adaptado para
carga. Retiradas as rodas traseiras e o porta-bagagem do teto,
o jipe foi encaixado no bojo da aeronave, com apenas 2 centímetros
de folga. E, assim, desceram em São José da Costa Rica, onde tiveram
a companhia dos "ticos", originais escoteiros costarriquenhos,
com quem passaram simpática intimidade durante alguns dias. Prosseguindo
viagem, mal sabiam que iriam enfrentar o maior susto da aventura.
Em uma ponte de madeira, de tábuas, o jipe deslizou na lama fina
e percorreu toda a extensão da ponte, até que, já do outro lado,
desceu por um barranco e deu uma volta completa, com toda a equipagem
dentro! Depois da constatação de alguns "galos", distribuídos
entre si, verificou-se que a capota rígida, colocada em São Paulo,
possivelmente lhes havia salvado a vida... e que o jipe apenas
sofrera algumas amassadelas.
Com algumas
horas de viagem estavam em Manágua, na Nicarágua, onde o jipe
foi retocado e desamassado. Prosseguiram, então, para Tegucigalpa
(Honduras), San Salvador (El Salvador) e Guatemala, onde, novamente,
não há passagem para o norte, pois a estrada pan-americana é desencontrada
na região. Assim, foi necessário colocar o jipe em prancha de
via férrea, em Tapachula, na fronteira da Guatemala com o México,
e levá-lo em 8 horas de percurso até a retomada da rodovia, deixada
ao sul, pegando, então, o início da estrada asfaltada para daí,
até o extremo norte da viagem, não mais largá-la.
México
e Estados Unidos
Pelas
estradas do México viram os pitorescos e multicoloridos índios
Maias, transportando seus objetos de indústria doméstica para
as feiras. Sua moeda, o peso mexicano, vale o mesmo que o dólar...
Passando por Oaxaca e Puebla, freqüentemente sob grossas chuvaradas,
chegam à capital, México, cidade vibrante, com 3 milhões de habitantes,
com bonitas e espaçosas avenidas no centro. E por ótimas estradas,
a 1500 km da capital mexicana, chegaram a Laredo, na fronteira
com os Estados Unidos, em 11 de agosto de 1955. Do Texas, partiram
para o Norte, atravessando os Estados de Louisiana, Arkansas,
Tennessee, Kentucky, Ohio, Pensilvania e Nova York, para alcançarem
Ontario, 5 dias depois de haverem deixado a fronteira mexicana.
Desde
São Paulo, estavam viajando, ininterruptamente, por 4 meses e
meio. Passando pela Ponte de Lewinston, uns 20 km abaixo das famosas
quedas do rio Niagara, entraram no local demarcado para a realização
do VIII Jamboree Mundial, escopo final da aventura automobilística.
Ali, em Niagara-on-the-Lake, o jeep "Verde-e-Amarelo" foi motivo
de permanente curiosidade, motivando o interesse de milhares de
escoteiros pelas coisas da nossa terra, pois achavam-se presentes
no Jamboree nada menos de 11000 participantes, representando 68
países. Charlie, Hugo e Jan iriam, ainda, ao completar-se a "Operação
Abacaxi", bater o recorde de permanência em automóvel, bem como
a distância percorrida.
Mais
para o norte
Terminado
o Jamboree, os nossos amigos cruzaram a fronteira em direção a
Toledo, Ohio, onde foram recebidos na fábrica Willys, de onde
se originaram os famosos jipes. Haviam, então, planejado visitar
o território do Alasca e, no teste a que o "Verde-e-Amarelo" foi
submetido pelos engenheiros da Willys, ficou patenteado que o
carrinho se achava nas mais perfeitas condições mecânicas. Por
isso, foi somente acondicionado para proteger seus tripulantes,
bem como o funcionamento, contra as temperaturas excessivamente
baixas que prevalecem naquela região vizinha do Pólo Norte. Depois
de adequadamente provido de pára-brisas duplo, aquecimento para
o bloco, anticongelante e protetor para o radiador, tudo feito
pela Willys Overland, rumaram, primeiro a Oeste, até Chicago,
atravessando a "fronteira mais amiga do mundo", que é a do Canadá
com os Estados Unidos, e na qual não há formalidade alguma a não
ser a prova de motorista habilitado! Chegaram, então, a Winnipeg
e Edmont, em Alberta, e daí a Dawson Creek, quilômetro zero da
famosa estrada de Alasca, que foi construída em 1941, em seis
meses, quando os japoneses chegaram a ocupar duas das ilhas Aleutas,
no Mar de Behring, logo no início da última guerra mundial.
Alasca
As desencontradas
lendas foram, então, lembradas, desde a temperatura de -70ºC,
até a quebra de metais, e as nevadas intransponíveis. Embora sem
acabamento de cidade, a estrada é perfeitamente passável o ano
todo. Construída sobre pedra britada e sob tráfego constante,
a rota para o Alasca possui, ainda, uma estação de "patrol" a
cada 50 milhas, as quais dispõem de equipamento apropriado para
todos os reparos de manutenção. Em 11 de novembro, com o inverno
a entrar, transpuseram a fronteira do Alasca, e rumaram para uma
base aérea, onde permaneceram até o dia 29, quando procuraram
atingir, então, a pequena cidade de Circle City, cujo nome partiu
da presunção de que estivesse localizada sobre o Círculo Polar
(fica, no entanto, 40 km ao Sul), o que realmente não foi possível
dado que nessa época do ano a ligação é feita, exclusivamente,
por via aérea. Não obstante, tiveram oportunidade de visitar a
aldeia esquimó de Bethel, na costa do Mar de Behring, tendo também
ido até Kwethluk, onde existe uma tropa de escoteiros e uma missão
Moraviana; a única ligação para esse extremo de terra é feita
por meio de avião, quando possível, e mais normalmente por trenós
puxados por cães. No entanto, por cortesia da Força Aérea Norte-Americana,
visitaram Fort Yukon, 12 km para dentro do Círculo Polar Ártico.
Em Anchorage, cidade de 60 mil habitantes, também lhes foi dada
a oportunidade de mais um teste escoteiro - acamparam, com mais
de 253 companheiros, em um campo simulando condições de emergência.
Aí, apesar de haver sido registrada a temperatura de -27ºC, tudo
se passou normalmente, até mesmo para os pequenos escoteiros de
10 anos.
E, de
novo, embarcaram no "Verde-e-Amarelo", agora com o radiador virado
para o Sul. Chegaram em São Paulo no dia 14 de abril de 1956.
O velocímetro marcava 71985 km. Ficaram ausentes por 1 ano e 12
dias, quando o governador de São Paulo lhes deu as boas-vindas!
Pontos
extremos alcançados:
Latitude
máxima sul: 33º (Bariloche);
Latitude máxima norte: 65º (próxima ao Círculo
Polar);
Longitude máxima leste: 36º W (Recife);
Longitude máxima oeste: 162º (Bethel - Alasca);
Altitude máxima: 4693 m (Peru);
Altitude negativa: 84,7 m abaixo do nível do mar (Death Valley);
Temperatura máxima: 42ºC (Peru);
Temperatura mínima: -40ºC (Alasca).
* A palavra
"abacaxi", como adjetivo qualificativo, é sinônimo de dificultoso,
errático, inevitavelmente encrencado, tal como a aparência
da fruta tropical, de folhas lanceoladas, duras e serrilhadas,
e de casca grossa e rude, a que os botânicos abrandam com
a classificação "ananas ananas", em latim. Pessoas
há que se casam mal, outras atravessam o Canal da Mancha a
nado, ainda há outras que gostam de salada de jiló. O "abacaxi",
portanto, pode ser adquirido em caráter hereditário ou adotado
por prazer... Mas, de um modo geral, o dono de um "abacaxi"
o nega; procura, mesmo, escondê-lo, na sensação expectante
da crítica, ou da retirada de apoio do próximo, que, grandes
ou pequenos, já têm os seus... |
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