Puro-sangue inglês
Texto e fotos: Renato Bellote Gomes
As grandes religiões do planeta têm cidades sagradas distintas. Cada uma com a sua devida importância histórica. Para os apaixonados por velocidade, porém, o local mais famoso de peregrinação é o solo abençoado de Le Mans.
Há mais de 70 anos gente do mundo inteiro visita a região para a edição anual da prova de endurance mais esperada do planeta. Mais do que representar um dia inteiro, as 24 horas simbolizam esforço, capacidade e principalmente prestígio. A vitória por lá aproxima engenheiros e pilotos de uma perfeição mecânica e do verdadeiro - e sem exagero - Olimpo automotivo.
Para muitos chefes de equipe e projetistas, a prova francesa sempre foi um sonho. Na maior parte das vezes dificílimo de ser alcançado. Motores em alta rotação, borracha queimando na grande reta oposta e corações acelerados na platéia a cada pit stop. Isso é Le Mans.
Por outro lado, para um jovem britânico, a certeza de vitória era certa. Sua obstinação fez com que criasse automóveis e visse a Jaguar faturar a disputa nada menos do que 4 vezes. Seu nome era William Lyons, mais tarde agraciado com o título de Sir.
Da Europa convido o leitor diretamente para uma garagem de São Paulo. Era uma manhã fria de março quando cheguei para fotografar mais um clássico. Debaixo da capa de lona descansava um reluzente felino, de cor azul que salta aos olhos e linhas esculpidas para cortar o vento. E vencer corridas, é claro.
A recriação perfeita do C-Type pertence ao arquiteto William Halberstadt, um apaixonado pela marca inglesa e fundador do clube do Jaguar no país, em 1974 . Seu interesse começou há muito tempo atrás, mais precisamente aos 2 anos de idade, a bordo do XK 120 do pai.
Antes de falar sobre minhas impressões, contarei a história do modelo. O C-Type foi projetado por Malcom Sayer no início da década de 50. A exigência era bem clara: ser um puro-sangue digno da estirpe Jaguar. E ele conseguiu.
A carroceria de alumínio, aliada ao chassi tubular, obteve um peso baixo para o bólido. Com motores de 6 cilindros em linha ultrapassava os 200 cv de potência e era extremamente veloz. Ele também foi o primeiro carro de corrida a utilizar freios a disco. Resumindo: o felino estava talhado para a vitória.
E as conquistas não demoraram a chegar. Sua estréia em Le Mans ocorreu em 1951, já com o 1º lugar. Dois anos depois, sob o comando de Duncan Hamilton e Tony Holt, outra vitória na prova. Em 1954, despedida das corridas, um 4º lugar e também uma participação expressiva nos 1000 Km de Buenos Aires.
Por tudo isso, peço ao leitor que observe com atenção o carro das fotos. Repouse o olhar nas rodas de cubo rápido, no grande volante de 3 raios e nos instrumentos que orientam o motorista. Ele é tão perfeito que também tem uma carroceria toda de alumínio e mecânica completa da marca!
Acomode-se no banco esportivo, afivele os cintos de segurança da Willans e gire a chave. A partida é rápida. Um rugido sai dos escapamentos laterais. A fera está acordada. O ronco é grosso, áspero, estimulante. O conta-giros ao contrário se destaca no painel. Uma pisada e o ponteiro salta. História viva.
O piloto tem a visão clara, através do pequeno pára-brisa. Sentado nessa posição é possível admirar o longo capô da fera. Pelos retrovisores a visão da "pista" também é perfeita. Eles eram úteis na época, já que poucas máquinas andavam na frente do bólido.
Um detalhe merece especial atenção. Do lado direito, onde fica o carona - ou co-piloto, como preferir - se destacam as velas. Um local bem escolhido e muito prático no caso de uma troca inesperada durante as corridas. O mesmo pode ser dito do tanque de combustível, que tem o bocal para reabastecimento rápido. Nada de perder tempo nos boxes.
Se você é - um pouco - curioso deve ter reparado no pequeno boton colado no painel. Nele está escrito Ecurie Ecosse. A escuderia escocesa foi fundada em 1952 por alguns apaixonados por automobilismo. Nessa mesma década o time venceu por duas vezes - a bordo de um Jaguar D-Type - as 24 de Le Mans.
A paixão pela velocidade ainda levou a equipe a disputar muitas provas de resistência. Um dos mais famosos integrantes foi Jackie Stewart, tricampeão de Fórmula 1. Oficialmente desativada em 1971, a escuderia voltou à tona no início da década seguinte, mas sem o brilho dos primeiros anos.
Força bruta e muita classe. A Jaguar é uma das únicas que sempre conciliou esses dois fatores. E com uma pitada de história, como no caso desta belíssima recriação. Com ela, é só pegar o capacete e pisar fundo em uma pacata estradinha inglesa, com a neblina cobrindo os primeiros raios de sol.
Até a próxima!
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